Julio Machado Correia é de Florianópolis (SC), graduando em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor, porteiro e poeta. Em 2022 participou da coletânea Primeiras pessoas do Clube de Escrita do IFSC-Florianópolis. Atualmente é aluno no CLIPE POESIA 2023 da Casa das Rosas (SP) e participa do Ateliê escrever desejar escrever da Escola da Palavra (RJ).
Tarde de maio
Sacolas carregadas de frutas,
produtos de higiene e quinquilharias
da China não pesam mais
que a pequena mochila rosa
da menina de mãos dadas
ㅤㅤㅤㅤcheia de incertezas.
O fim de tarde em qualquer metrópole
se faz de milhões de passos que voltam
a qualquer coisa que os tenham convencido
chamar de casa, seja mesmo uma construção
ㅤㅤㅤㅤ(o sonho de alguns é
ㅤㅤㅤㅤde alvenaria e concreto
ㅤㅤㅤㅤarmado, telhas de cerâmica,
ㅤㅤㅤㅤlírios e begônias no quintal)
ou só uma marquise em que se tenha
convencionado abrigar
ㅤㅤㅤㅤa amizade de um cão.
Após sua jornada de trabalho
uma mulher ainda busca
a filha na creche, faz tentativas
de abastecimento em supermercados
e toma a condução
para onde o sono lavará os calos
com os quais amanhã
ㅤㅤㅤㅤatravessará – outra vez
de cabeça erguida – muralhas.
É assim na primavera, é assim no outono,
ㅤㅤㅤㅤmas não se desespere.
A oeste o sol se põe
e sei de mães proletárias
em largos vãos a costurar
os nossos casacos de maio.
entrequadros
o pedreiro na janela de reboco
elabora a rua/ horário de almoço
ele olha pra mim quatro andares abaixo
eu olho pra ele [um quadro entre vários]
ele parece o meu pai
carrega a verdade calcinada na face
os cílios respingados de cimento
fibras de eucalipto nas retinas/ construções
eu quero fotografá-lo/ não tenho coragem
/ eu penso guardar o seu olhar
ele tem braços queimados
e mira o smartphone contra mim –
mas é sempre muito brilho muita distância
– eu nunca alcancei os silêncios do pai –
[o sol é um vício inscrito no couro
uma marmita às vezes é pouco]
ele acende um cigarro na minha cabeça
se distrai facilmente com canarinhos
eu queria saber voar/ ser visto no céu/
mas a chama apaga e voltamos à obra
Treinamento
I
Um dia disposto
acordar mais cedo
(ao menos tentar).
ㅤㅤㅤㅤRomper a janela
ㅤㅤㅤㅤno tempo dos galos.
Sobretudo
ㅤㅤㅤㅤse estiver frio.
Tomar o rumo do Centro.
Em volta às migalhas,
na Praça XV em pé
batalhar junto aos pombos
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤa paz dos dias.
II
Feito sábios pássaros
que aprendem a migração
nos primeiros voos,
ㅤㅤㅤㅤtornar, aos gritos
(sem pena ou espera
de parabéns),
ㅤㅤㅤㅤa doação paciente
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤdisciplina solar.
III
Tecer
ㅤㅤㅤㅤna trinca da noite
– a intransigência entre os bicos –
ㅤㅤㅤㅤnovo trigal:
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤnosso verão.
Arte: Eurasian woodcocks flying, de Bruno Liljefors.